Ficha Técnica

A Terra dos filhos capa
Capa de: Gipi

A Terra dos filhos
Autor: Gipi (roteiro e arte)
Preço: R$ 99,90
Editora: Veneta
Publicação: Maio / 2018
Número de páginas: 288
Formato: Magazine (21 cm x 28 cm) Preto e branco / Lombada Quadrada / Capa brochura
Gênero: Suspense
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Sinopse: Em um futuro apocalíptico, um pai tenta educar os seus dois filhos para sobreviverem em um mundo hostil e impiedoso. Em meio às duras lições de seu pai, os garotos ainda se veem em um mistério: o que ele tanto escreve em seu diário? E é quando a tragédia os pega de surpresa, ambos saem em uma jornada para descobrirem os segredos guardados no diário.

Uma HQ de formação

Há na Literatura um gênero conhecido como romance de formação que agrupa obras como Apanhador no campo de centeio de J. D. Salinger e Demian de Herman Hesse. De forma resumida e bem simplista, o que vemos nessas obras é o processo de amadurecimento do protagonista através do conflito com o meio em que vive. Seu dilema interno tem como objetivo uma compreensão mais ampla do mundo e consequentemente de seu papel. E é este percurso que iremos acompanhar em A Terra dos filhos do italiano Gipi.

Trazida pela editora Veneta, a obra é a primeira publicação do quadrinista a aterrissar em solo brasileiro e carrega na bagagem os prêmios do Grande Prêmio da ACBD (Association des Critiques et Journalistes de Bande Dessinée), Grande Prêmio da RTL, do Festival de Saint-Malo, além de uma indicação no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême de 2018. E todo esse currículo é espelho de um poderoso quadrinho acerca de temas como paternidade, luto, esperança, choque de gerações e crescimento.

Em uma terra devastada seguimos a trajetória de um pai e seus dois filhos lutando para sobreviver entre os charcos e ruínas de um mundo que não existe mais. Sem maiores explicações sobre os motivos que levaram a destruição da sociedade como a conhecemos, o quadrinista italiano nos apresenta um futuro brutal onde a vida é reduzida ao essencial e onde somente os fortes podem existir.

De uma pedagogia violenta

Arte de: Gipi

Neste futuro distópico, a sociedade retornou ao estado de natureza, graças a uma grande e não explicada hecatombe, e dentro desta nova realidade somente os mais fortes e impiedosos podem sobreviver e prosperar, se é possível utilizar essa palavra em meio à desolação. E é com este princípio com que o pai irá reger a educação de seus dois filhos, mesmo que para isso tenha que se arvorar como uma figura tirânica.

Proibindo palavras afetuosas, demonstrações de sentimentos e se valendo de castigos físicos para afirmar sua posição e ensinamentos, o pai produz uma atmosfera que reproduz, com igual intensidade, toda a crueza do ambiente que os cerca. E o que vemos é uma matilha que rosna, perscruta o ar e range os dentes a cada movimento de seus taciturnos membros.

Algo fundamental a se entender em A Terra dos Filhos é a aspereza das ações dos personagens e como ela nos choca. Tudo na HQ nos lembra de como a civilidade que nos cerca é frágil, efêmera e não sobreviveria uma troca de gerações sem a estrutura que a sustenta. Valores, atividades e ações tidas como normais e rotineiras para nós são descartadas e substituídas por uma lógica amoral e ações pragmáticas que constantemente colocam o leitor num incômodo contraponto no qual se vê questionando esta ou aquela cena, fala, gesto e situação.

Uma mudança de paradigma

E este incômodo não é sentido apenas pelos leitores, os próprios personagens mais velhos e que viveram dentro desta estrutura social se ressentem nesta nova realidade, o que é demonstrado em diálogos aqui e ali no decorrer da história, principalmente naqueles protagonizados pelo pai. Ademais, é justamente por ele ocupar o papel de progenitor que o mesmo possui um entendimento mais aprofundado do que está acontecendo: uma mudança radical de paradigmas, uma quebra na passagem geracional dos princípios aos quais estávamos acostumados.

Arte de: Gipi

Sem contar que o próprio título já nos dá esse indicativo, assim como várias passagens da obra que evidenciam o antagonismo simbólico dos mais velhos, que se lembram de como era o mundo anteriormente, dos mais jovens, que livres das memórias de um mundo antigo.

Não à toa, a recusa do pai em ensinar os seus filhos a ler e a escrever é tão emblemática. Símbolos de um passado que já não dialogam com aquilo que deve ser aprendido para sobreviver e que em suas mãos se tornam um atributo de opressão e violência materializado em um diário.

Toda essa dinâmica é mostrada de forma primorosa através de uma narrativa concisa, equilibrada e com uma arte esplendorosa, carregada de hachuras, que dá a linguagem corporal dos personagens a primazia da narração, já que os diálogos curtos pouco ou nada revelam do interior dos personagens. Aliás, deixo a minha dica aos leitores para que prestem atenção aos detalhes e que examinem as páginas com cuidado para não perderem o fio da meada. Sem falar que são nos pormenores que estão informações sobre o passado dos personagens, a região onde a história se passa e as diferentes lições com as quais os filhos irão se deparar em sua trajetória por este mundo inundado e atroz.

Curiosidade e Liberdade

Apesar da importância da figura paterna, a história tem como protagonistas dois irmãos – o primogênito, mais comedido e submisso; e o mais novo, arredio e bravio – e é em torno deles que a trama gira.

São eles os nossos guias por essa nova terra e são através de seus olhos e julgamentos que somos apresentados aos outros personagens: a bruxa, o louco, os irmãos mutantes, a garota escrava e ao perigoso e fanático grupo intitulado “Os fiéis”.

Algo que vocês já devem ter percebido é que até agora não dissemos o nome de nenhum dos protagonistas e o motivo para isso é que não há nomes, ou melhor, eles não são ditos. Afinal de contas, nomeá-los seria humanizá-los e consequentemente torná-los sujeitos dignos de afeto e o oposto é uma ferramenta de brutalização e distanciamento, algo que vemos cotidianamente. E mesmo aqueles que são nomeados são seres tão cruéis que o conceito de humanidade não pode ser aplicado a eles.

O processo de emancipação

Porém se em A Terra dos Filhos somos confrontados a todo momento com este processo de brutalização, a jornada dos dois irmãos é o oposto disto. A seu próprio modo, cabe a dupla reorganizar os valores apreendidos no campo familiar e colocá-los a prova a medida em que alargam os seus horizontes e exploram os charcos a sua volta impulsionados pela curiosidade e pela liberdade. E é aqui que o roteiro do quadrinista italiano brilha.

Utilizando-se dessas duas virtudes, Gipi nos dá a oportunidade de contemplar a importância de ambas na formação de um indivíduo e nos lembra que são elas os alicerces da compreensão humana. Pois o que empurra os irmãos para o mundo são o desejo por conhecimento, transmutado na decodificação do diário, e a efetivação da emancipação moral, materializada nas inúmeras decisões a serem tomadas pelos incautos irmãos.

A Terra dos Filhos – Conclusão

Sem querer alongar, este já extenso texto, quero terminar dizendo que A Terra dos Filhos é uma daquelas HQs que podem ser analisadas a partir de diversos pontos diferentes e que a cada leitura suscita algo diferente no leitor. E digo isso por experiência própria, já que para esta resenha a li três vezes em diferentes períodos e sempre terminava com a sensação de estar diante de uma grande história. Principalmente quando analisamos o papel da paternidade na HQ e que nos remete também a algumas questões do Soldador Subaquático do Jeff Lemire.

Muito disso é fruto de um exemplar domínio narrativo do quadrinista italiano que entrega momentos de tensão,partilha, força, paternidade e principalmente amor. Seja nas palavras misteriosas de um pai tirânico, num estender a mão a quem precisa de ajuda ou em fotos espalhadas em um rio.

E poderemos ver isso nas telas do cinema, pois a obra ganhou uma adaptação pelas mãos do diretor, também italiano, Claudio Cupellini com previsão de lançamento para este ano – ainda sem trailer. Porém, para você que ficou interessado em saber mais sobre o autor, fica a minha recomendação de ler a HQ e de também de ver o vídeo do canal DarioMocciaChannel.

Nota: 5 de 5.

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Autor: Thiago de Oliveira

Há mais de duas décadas lendo e colecionando quadrinhos. Tem mais da metade do que gostaria e menos do dobro do que queria ter. Não dispensa um pão de queijo, um café e uma cerveja.

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