Ficha Técnica
Noite de Trevas: Uma História Real do Batman
Autores: Paul Dini (roteiro) e Eduardo Risso (arte e cores)
Letrista: Mnyk22
Tradução: Eric Novello e Levi Trindade
Preço: R$ 72,00
Editora: Panini / DC Comics
Publicação: 2017
Número de páginas: 128
Formato: 19 x 28 / Colorido / Capa dura
Gênero: Super-heróis
Sinopse: Paul Dini é um dos roteiristas e produtores mais aclamados dos EUA. Cocriador da Arlequina e um dos cabeças de Batman: A Série Animada. Porém caminhando de volta para casa num fim de noite é cercado, assaltado e brutalmente espancado. Com vários ossos quebrados e o rosto desfigurado, Dini se cerca de seus personagens e mergulha em suas memórias, traumas e anseios para se reerguer.
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Na introdução do livro “A cruzada mascarada: Batman e o nascimento da cultura nerd”, Glen Weldon diz que o Batman assumiu diversas formas ao longo dos anos e que não existe uma imagem que o defina. Ele é como um palimpsesto onde roteiristas e público vão, continuamente, depositando suas projeções fazendo com que diversas contradições coexistam em um mesmo ambiente.
Além disso, ele é um de nós. O Batman é um cara normal, que com muito treino e disciplina se tornou um super-herói, algo que eu ou você também poderíamos nos tornar. Só que não. Contudo, muitos são aqueles que continuam a mirar no personagem como uma meta crível e possível. Para Weldon, o motivo para isso é a sua reação singular à tragédia que se abateu sobre ele: o seu juramento.
À primeira vista, é um juramento ridículo, tão risivelmente magnânimo e melodramático, que somente uma criança poderia fazê-lo.
E é aí que está o seu poder.
O juramento é uma opção, um ato de volição. É uma reação deliberada à injustiça que o arrasou. Mais crucialmente, é um ato de autossalvação. Afinal de contas, são essas vinte e duas palavras que dão propósito à sua vida e direcionam-no a uma existência totalmente dedicada a proteger os outros da sina que o acometeu. É por isso, apesar de todas as apregoadas trevas em torno do personagem, que ele sempre foi uma criatura não da ira, mas da esperança. Ele acredita que é um agente da mudança – ele é a encarnação viva da ideia simplória, implacável e otimista do Nunca mais (Weldon, 2018, p. 10).
Não sei se o roteirista está familiarizado com o livro de Weldon, mas em uma sequência de Noite de Trevas: Uma História Real do Batman, ao falar com o próprio cavaleiro das trevas, Dini diz: “Você é irreal. Uma fantasia inatingível de poder de uma criança”. Onde acrescento: uma fantasia de poder que mexe e muito com a cabeça de meninos. Afinal, quem não gostaria de ser e ter o que ele tem?
Rico, bonito, branco, rodeado de belas mulheres, charmoso, inteligente e sempre preparado para tudo, seja uma briga ou o conserto de alguma quinquilharia de seu maquinário. Eventualmente, é até mesmo possível vê-lo como um exemplo do que muitos masculinistas pintam por aí. Entretanto, assim como o Batman, este ideal de masculinidade que vem sendo promulgado é inalcançável e o que sobra em seu rastro são meninos e homens massacrados e meninas e mulheres machucadas.
Sobre performar masculinidade
É raro ver homens falando tão abertamente sobre os seus sentimentos, medos e desejos. Ok, existe toda uma tradição dentro da nona arte de quadrinistas homens falando sobre suas neuroses, vícios e canalhices, transformando suas falhas em piadas e histórias que, convenhamos, já não rendem mais como rendiam algumas décadas atrás. Entretanto, a história de Paul Dini, narrada em primeira pessoa, é um relato sincero de alguém que não está buscando sentir pena de si mesmo ou usar suas falhas como escudo.
Mesmo não sendo o seu objetivo principal, ler Noite de Trevas: Uma História Real do Batman é não só ver os detalhes de sua vida, mas também ver como o machismo o atingiu, influenciou e feriu. A começar pela forma que o roteirista se nomeia durante a infância: “um garoto invisível”.
Franzino, tímido e avesso às práticas esportivas, o roteirista relata que só queria ficar a salvo dos valentões da escola e de outros monstros da infância. Um desejo que todo garoto que não se encaixa nos padrões almeja, mas que, assim como Dini, tem plena consciência que é mais fácil desejar do que acontecer.
Desde a tenra infância é ensinado e cobrado que meninos se comportem de uma determinada forma. Forma esta, bastante rígida. Qualquer atividade ou atitude que fuja a norma é vista como passível de punição por parte de outros garotos. O que por sua vez desaguam em violências físicas e psicológicas, que fazem com que esses meninos, que estão à margem, busquem refúgios onde possam dar vazão a quem realmente são.
Para ele, dar vazão a quem ele de verdade era, significava poder deixar a sua imaginação correr solta enriquecida pelos livros, quadrinhos e animações que podia pôr os olhos. Ao passo que nesse período, ocorreu o seu primeiro contato com o Batman, primeiro com os quadrinhos e depois com a série de 66.
E aqui, talvez, possamos entender a magia dos quadrinhos de super-heróis para uma criança: eles dão a alguém desprotegido um símbolo de força, de um poder maior do que eles mesmos e que seus desafios. Algo em que podem se escorar.
Um homem vale o que tem no bolso?
Apesar de não ser, como o próprio roteirista norte-americano diz, uma história sobre Batman: A Série Animada, a maior parte dos eventos narrados na HQ se passa quando Dini e os outros roteiristas estavam se preparando para começarem a escrever o roteiro de Batman – A Máscara do Fantasma. Tendo criado a personagem Arlequina, em 1992 junto com Bruce Timm, é possível dizer que ele era um profundo conhecedor do cruzado encapuzado e não é exagero dizer que ajudou a criar toda uma nova leva de fãs do personagem.
Como o próprio diz, ele estava em seu auge, vivendo o nirvana nerd. Repleto de celulóide de animação nas paredes, bonecos (sim, bonecos e não action figures) vintages cobrindo todas as prateleiras de sua casa, videogames e jogos, trabalhando com o que gosta, ganhando prêmios e recebendo um bom salário. O que mais ele poderia desejar?
Assim como muitos outros homens, Dini tinha a sua autoimagem atrelada às coisas que tinha e às pessoas que conhecia. Dinheiro e bens materiais são formas de afirmação comuns entre homens, não à toa ouvimos a torto e a direito a frase: “um homem vale o que tem no bolso”. É a partir disso que homens de diferentes classes sociais se medem e medem o mundo ao seu redor, de tal forma que isso dará origem à teoria masculinista de que homens possuem capital social, enquanto mulheres possuem capital sexual. Teoria essa que não faz nenhum sentido, cabe dizer.
Dini não compartilha dessa visão extremada, mas muito da sua relação afetiva com mulheres passa por uma ótica machista.
Sobre se relacionar e se expressar
Há um diálogo rápido, porém bem interessante, junto a sua psicóloga, onde é possível ver que, mesmo fugindo da norma, o roteirista tem dificuldade em ver com clareza os seus sentimentos.
Essa dificuldade em entender os próprios sentimentos ou de minimizá-los é comum a muitos homens. Aliás, o silêncio sobre si e suas emoções é a bandeira que une homens de diferentes classes sociais e orientações sexuais. Homens não choram, não falam sobre seus dramas e quando são convocados a falar sobre suas emoções se sentem desconfortáveis e se veem sem as palavras necessárias para descrevê-las.
Algo que vemos em vários momentos na HQ, mas que se destaca durante a passagem onde Dini discute a sua relação com as mulheres. Assim como muitos outros homens, o que Dini busca não é uma companheira, mas uma idealização. Uma forma com cor, cabelos e unhas, mas que carece de substancialidade. O que quero dizer com isso, é que ao buscar se envolver romanticamente Dini não vê as mulheres como sujeitos com suas próprias agendas; o que faz com que ele não veja as suas reais intenções com ele.
Ao buscar se envolver romanticamente com uma atriz, reproduz o machismo em seu comportamento ao se gabar para outros homens deste suposto relacionamento amoroso. Afinal de contas, ter uma bela mulher ao seu lado é outra coisa da qual se vangloriar junto aos seus amigos. Um acessório capaz de validar a sua virilidade em um mundo nerd.
Este descompasso na forma de ver as mulheres como indivíduos faz com que Dini também esteja cego quanto aos seus próprios sentimentos, restando somente a frustração. Tanto que é na sequência de seu encontro que vemos pela primeira vez Bruce Wayne, Hera-Venenosa e Coringa sendo evocados por Dini. Um recurso para que o próprio possa entender os seus sentimentos e a própria situação que está passando.
Batman: um ser de esperança
É a presença dos personagens do universo do cavaleiro das trevas que transforma o relato do roteirista em algo maior do que a simples descrição de eventos ou de se lamentar. Cada um dos vilões aqui invocados refletem um sentimento, uma forma de se reconectar com aquilo que há de mais profundo em Dini e consequentemente, em nós também.
Dentre os sentimentos evocados nesta segunda parte de Noite de Trevas: Uma História Real do Batman, dois se destacam: a raiva e o auto ódio. Sentimentos que muitos homens sentem e não sabem exatamente como explicar ou lidar, principalmente aqueles que possuem baixa autoestima. Mas há outra coisa, uma vontade de se reerguer expressa nas aparições do Homem-Morcego.
Não são poucas as histórias em que o Batman é retratado como um símbolo de esperança. Toda a minissérie Noites de Trevas de Scott Snyder (roteiro), Greg Capullo (desenho) fala sobre como o Batman é aquele que melhor representa a esperança no universo DC mais do que o próprio Superman. Contudo, esperança sem perseverança é uma promessa vazia e é aqui que Dini demonstra o quanto conhece o personagem. Seu roteiro, não aprovado, reunindo Batman, Sandman e sua irmã a Morte para Batman: A Série Animada é um resgate do que há de mais primordial no juramento do cavaleiro das trevas.
Recuperando as palavras de Glen Weldon: “O juramento é uma opção, um ato de volição. É uma reação deliberada à injustiça que o arrasou. Mais crucialmente, é um ato de autossalvação.” Por isso o roteiro não é só sobre o Batman, por isso que várias histórias do Batman não são só sobre ele e é aí que está o pulo do gato e é por isso que ele também foi crucial para Dini em seu momento mais sombrio.
Conclusão
Uma história do Batman não seria uma história do Batman sem o Coringa. Esta dualidade já tão explorada em diferentes mídias é utilizada por Dini também para exemplificar que muito do Coringa não é só sobre ele. O palhaço do crime é usado aqui não para representar um medo, mas um modo de ver a vida. Uma visão monstruosa e acessível a todos nós e que está lá à espreita. Dizer mais seria entregar muito da leitura e acredito que já tenha esmiuçado demais a HQ e espero ter aguçado a sua curiosidade em ir atrás dela.
Para encerrar, a história de Dini é banal, uma das muitas de superação, tanto que o próprio roteirista e o vilão tem consciência, mas que há algo nela que brilha e que faz com que ela não seja apenas sobre o roteirista. Ela ressoa naquele lugar, que Bruce Wayne ainda criança escutou e que muitos de nós também escutamos em momentos lúgubres e que nos colocam de pé, aquela sensação otimista, inabalável de que podemos ser mais e melhor.