Ficha Técnica
Cosplayers: fantasiando a vida
Autor: Dash Shaw (roteiro e arte)
Tradução: Dandara Palankof
Preço: R$ 59,90
Editora: Conrad
Publicação: Fevereiro/2022
Número de páginas: 144
Formato: 16 x 23 cm / Colorido / Lombada quadrada
Gênero: Alternativo
Sinopse: Vídeos caseiros, brechós, convenções, mangás e animes, lojas de quadrinhos. São nesses espaços e atividades que iremos acompanhar as histórias das amigas Annie e Verti. Apaixonadas pela cultura pop, quadrinhos, animes e com muito talento para o Faça você mesmo, as duas mostram que de monótono esse universo não tem nada.
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É interessante pensar em como algumas obras vão chegando até as nossas mãos. Ano passado, me debrucei em várias publicações sobre o ato de colecionar e também sobre essa tal cultura pop, que tanto nos assombra. Um fato curioso dessa caminhada, tem sido ver como há tantas HQs que possuem como pano de fundo esses dois cenários para suas histórias. Para quem acompanha o blog a mais tempo, vai se lembrar, por exemplo, de Um fim de semana ruim.
Como não poderia deixar de ser, o acaso acabou me fazendo esbarrar em Cosplayers: fantasiando a vida de Dash Shaw, graças a postagem do editor Guilherme Kroll da Balão Editorial e consultor da Conrad Editora. Ele postou uma imagem de um quadro mostrando um pesquisador palestrando para duas pessoas em uma convenção. Desde então, coloquei na cabeça que daria um jeito de ler a HQ do quadrinista norte-americano.
Mas antes de falar da HQ em si, um pequeno adendo. Dash Shaw já é figura conhecida por aqui, afinal é ele o autor de Umbigo sem fundo, obra publicada lá nos longínquos 2009 e bastante elogiada. Que, ainda não li, mas que agora já está na lista de aquisições, afinal de contas a tradição por aqui é sempre começar pelas beiradas.
A edição da Conrad
Bem, voltando a Cosplayers: fantasiando a vida, a edição brasileira conta com duas histórias bônus: Meu Colégio Inteiro Afundando no Meio do Mar e o Colégio Assombrado. A primeira história é precursora das histórias de Cosplayers, e é uma reencenação de Titanic interpretada pelo próprio Shaw, mas com algumas surpresas. Além disso, ele daria origem ao filme homônimo, com Jason Schwartzman no papel do quadrinista, lançado em 2016.
Os dois pequenos contos dão, se não o tom, pelo menos a estética do que iremos ver pela frente: Cores chapadas, passagens em preto e branco perpassadas por manchas coloridas. Ao mesmo tempo em que funcionam como prólogo e epílogo, já que ambas as histórias se conectam entre si, para além do ambiente onde se passam, e com a história principal através da quebra de expectativa. Volto nisso mais para frente.
Outro ponto para se destacar na edição da Conrad é o uso das contracapas como páginas, o que se mostra não somente como um inteligente uso do recurso, mas também dá ao volume um caráter unitário. Como se estivéssemos dentro deste estranho fluxo proposto pelo quadrinista norte-americano.
Cosplayers: fantasiando a vida
De natureza episódica, a HQ conta com oito episódios narrando as aventuras e desventuras de Annie e Verti, que estão em um ano sabático entre o colégio e a faculdade.
Cada um dos pequenos contos aborda aspectos da comunidade cosplay, da cultura pop, do fandom, das convenções de quadrinhos e animes, sobrando até mesmo para os colecionadores. Tudo isso, enquanto, vemos o desenvolvimento das personagens, de sua amizade, interesses românticos e todo o drama de ser um jovem adulto.
A HQ começa com Annie e Verti se conhecendo em uma convenção e rapidamente se tornando melhores amigas. O mais interessante desse capítulo, é como ambas trazem o cosplay perigosamente para perto de suas vidas. No ímpeto de criarem os seus próprios filmes, elas passam a interagir e filmar com estranhos, ao mesmo tempo em que interpretam diferentes personagens. Annie, como protagonista da maior parte das histórias, e Verti, como cinegrafista.
Shaw faz um trabalho esmerado e em poucas páginas consegue não somente apresentar o universo das personagens, mas também cristalizar a amizade das duas (nada como um pouco de pancadaria com desconhecidos no bar para isso).
Esta decisão de gravar os seus próprios filmes é o evento catalisador para os dois próximos capítulos da HQ. No segundo, as personagens entram em contato com o tenebroso mundo dos comentários do Youtube (Cosplayers_e_Críticos) e no terceiro os papéis se invertem e temos uma filmagem protagonizada por Verti, que conhece um rapaz numa loja de videogames (Cosplayers_e_seus_jogos) e acaba saindo para um encontro com ele.
Já no quarto conto, as duas vão a uma nova convenção: a Tezukon, especializada na obra de Osamu Tezuka. Aqui, temos a inserção de novos personagens como os dois rapazes, que fazem um interessante contraponto a dupla, e ao pesquisador Baxter.
Pateticamente humano
Este, talvez seja um dos episódios mais interessantes de Cosplayers: fantasiando a vida, pois é onde Shaw concentra a maior parte dos comentários dos personagens acerca de todo esse universo. A rivalidade entre os cosplayers, a tensão dos desfiles, a relação de fãs com obras e artistas e, principalmente, o amor por esses objetos e autores que com suas obras criaram universos fantásticos. E é também, onde acontece a passagem onde um quase solitário pesquisador apresenta seu trabalho para uma diminuta plateia e que me fez ficar vidrado na HQ.
Desajustado socialmente, Baxter, o pesquisador, é apresentado como alguém extremamente apaixonado pelo seu objeto de fascínio: Osamu Tezuka. Mas que também tem plena consciência de seu desarranjo, o que o torna pateticamente humano e faz com que seu final seja tão comovente.
Na verdade, todo este quarto capítulo pode ser visto como um amplificador dos temas trabalhados em toda a HQ: o drama, as desilusões, as angústias e alegrias do ser humano e nossas incessantes tentativas de nos conectarmos com o outro. Seja lá quem for este outro em sua multiplicidade.
Reparem em como o tema do conectar-se apareceu, em maior ou menor grau, em cada uma das histórias. A HQ começa com um encontro (das duas amigas), aborda a recepção do trabalho das duas pelo público, passa pelo interesse romântico de Verti, a própria convenção que pode ser entendida justamente como esse espaço de socialização. E isso porque eu só falei da metade das histórias contadas pelo quadrinista.
Contudo, outro recurso que também chama atenção ao final das histórias é o seu caráter anticlimático. Quando começamos a nos interessar por este ou aquele personagem ou trama, ela é interrompida abruptamente. Os desfechos são mais como reticências e pontas soltas não são retomadas. Entretanto, o sentimento que se tem não é necessariamente o de frustração, mas de que as coisas são assim: pessoas entram e saem, algumas retornam e outras não. Além de que a vida mesmo continua em outros locais que não temos acesso.
Do colecionador, do anticlímax e do sorriso amargo no final
Para além da função dramática, o anticlímax é também utilizado pelo quadrinista para volta e meia para criar situações de riso. Principalmente no capítulo intitulado Fuga do mundo da nostalgia. Uma crítica bem-humorada de como muito da cultura pop se alimenta deste sentimento e como que para as novas gerações muito daquilo que amamos pode não significar nada.
A figura do colecionador é abordada rapidamente na figura do dono da loja e de sua paixão pelos quadrinhos e em especial a sua obsessão com a adaptação do filme 2001 – uma odisseia no espaço feita pelo lendário Jack Kirby em 1976 no formato Marvel Treasury Edition; uma edição em formato maior com páginas com o dobro do tamanho do formato americano.
Todo este capítulo é uma longa sequência, o colecionador procura mostrar para a dupla de protagonistas como quadrinhos são a coisa mais legal do mundo. Um objeto inanimado, possuidor de uma força tremenda que nos impele a ir em sua direção, abri-lo e lê-lo. Uma metáfora bastante óbvia para todos que já estiveram na posição de convencer como este ou aquele título são importantes, grandiosos e inesquecíveis. Verdadeiros tomos onde podemos encontrar a resposta para a vida, o universo e tudo mais.
O que torna este capítulo uma ode em especial a este pequeno campo que ao mesmo tempo é um dos pilares de toda essa indústria gigantesca e totalmente esquecido às vezes pelo grande público.
Conclusão
Cosplayers: fantasiando a vida, é um daqueles quadrinhos gostosinhos de ler: personagens cativantes, histórias engraçadas e que consegue demonstrar como este universo de pessoas se vestindo de super-heróis, robôs, fantasmas e tantos outros personagens fantásticos, é em último sentido repleto de figuras demasiadamente humanas. Ao passo que mesmo que você não esteja imerso em convenções ou vestindo cueca por cima das calças vai conseguir te tirar um sorriso aqui e acolá, enquanto te faz refletir sobre como a cultura pop é tóxica, inebriante e porque ela chegou aonde chegou.
Nota: 3