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Críticas de segunda e Opiniões de quinta sobre Quadrinhos

Por Thiago de Oliveira

Sobre colecionismo e quadrinhos - De Segunda

Sobre colecionismo e quadrinhos

Algumas pequenas considerações sobre como Colecionismo e quadrinhos se tornaram uma dupla dinâmica nos últimos anos.

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No meu texto sobre os melhores quadrinhos de 2021 falei algumas vezes sobre me manter fiel aos critérios da minha coleção na hora de adquirir novos quadrinhos. Porém fiquei matutando acerca do termo colecionador, da situação atual do mercado de gibis, dos lombadeiros, do medo de estar perdendo algo. E por fim, como tudo isso parece estar conectado. Ou seria embaraçado? Por isso, a conversa que quero ter com vocês hoje é sobre colecionismo e quadrinhos e dar alguns pitacos de como a Biblioteconomia pode nos ajudar a termos um novo olhar quanto a isso tudo. 

Biblio o quê? Biblioteconomia é uma área interdisciplinar que tem como objetivo formar profissionais capazes de atuar na organização, tratamento e gestão da informação nos mais variados suportes físicos e virtuais. Estes suportes informacionais são livros, filmes, fotografias, quadrinhos e uma infinidade de outros objetos. Uma vez coletados, esses objetos precisam ser tratados, catalogados, indexados e disponibilizados, quando falamos de acervos públicos, ou dispostos de forma a fazer sentido, no caso de acervos pessoais.

Daí que entre outras coisas, nós, bibliotecários, estudamos a formação de coleções e como se comportam os diferentes tipos de colecionadores. Feito esta pequena digressão, voltemos ao tema principal.

AVISO: O texto a seguir é inspirado na matéria “Colecionadores e acervos pessoais: o universo colecionista” do professor Alessandro Costa da UFMG e ao final irei incluir as referências bibliográficas

Colecionar é contar uma história

Para começarmos, acredito que seja primordial entendermos o seguinte: colecionar é algo natural a todo ser humano. Todos nós, em algum momento de nossas vidas, iremos ter algum tipo de coleção. Pode ser de papel de carta, camisetas de time, objetos de papelaria, rolhas de vinho, jogos de videogame, canecas e por que não, pedras. 

O que importa é que esta necessidade de colecionar sempre nos acompanhou enquanto espécie. É só pensar nos inúmeros objetos utilitários que acompanham homens e mulheres em tempos remotos durante seus deslocamentos. Contudo, o ato ultrapassa o seu caráter utilitário e se encontra na interseção entre ordenar – raciocinar – e discursar – narrar. 

Com isso, quero dizer que colecionar é contar uma história. Por meio dos objetos coletados, o colecionador cria um universo que conta sua própria história, experiências e lembranças. Onde se pode dizer que ele é, para além de tudo, um contador de histórias. E se você duvida, sente-se ao lado de alguém que coleciona e pergunte algo como: “e esse aqui, foi difícil de achá-lo?”.

Na mão do colecionador, aquele objeto transforma-se em um signo e símbolo, emitindo mensagens que só podem ser entendidas se vistas em conjunto e através de seu olhar. Não é à toa que retirado esse verniz mágico, muitos, senão todos, todos aqueles bens podem soar como medíocres.

Porém, se engana que o prazer de um colecionador está na quantidade de objetos coletados. Claro que aquele lugar-comum de grandes salas e estantes abarrotadas faz parte, contudo a alegria da prática está justamente na busca por aquele item especial. Uma espécie de jogo entre procura-posse-exibição. 

Dito isso, vamos diferenciar duas figuras que num golpe de vista se confundem, mas que estão em lados opostos.

Colecionismo X Acumulação

Estantes lotadas, pilhas prestes a colapsar e sensação de que a qualquer momento vai ser engolido. Um labirinto feito de bagulhos infinitos e sem sentido tomando conta de cada centímetro disponível. E no centro disso tudo uma figura isolada e absorta. 

Para quem está de fora, essa descrição cabe tanto a um acumulador quanto a um colecionador. Principalmente para aqueles que convivem com alguém que possui uma coleção, mas que não entendem os seus critérios. E é nessa pequena palavra de quatro sílabas que está o segredo para distinguir de vez esses dois personagens. 

Alan Moore – acervo pessoal

Diferentemente de uma mera acumulação, toda coleção possui um objeto-tema bem definido. Por exemplo, uma coleção de quadrinhos. Todos os objetos ali reunidos são de uma mesma mídia e dialogam entre si, criando conexões e subdivisões temáticas. Não à toa, é possível dizer que colecionismo e quadrinhos se tornaram uma dupla dinâmica imbatível.

Desta forma, por mais que num primeiro momento estas nuances não sejam percebidas, a coleção é capaz de proporcionar uma leitura clara do acervo ali reunido e suas relações simbólicas básicas. Diferentemente de uma mera acumulação, onde os objetos coletados não possuem quaisquer pontos de ligação.

Além disso, o colecionador é movido por impulsos emocionais e instintivos, orientados por uma atitude deliberadamente racional. Enquanto que o acumulador dificilmente consegue explicar o que o levou a coletar e armazenar um objeto.

Por último, o colecionador possui uma metodologia que segue critérios pessoais e/ou partilhados por pares. Isso quer dizer que há espaço para um diálogo capaz de definir metas, estratégias de aquisição e manutenção daquele acervo. Como por exemplo: rodas de conversa sobre a melhor forma de conversão de quadrinhos, melhores traduções ou quais edições são mais raras.

Então, por mais bagunçada que uma coleção se apresente, ela é detentora de significado facilmente entendido. Seja através de uma entrevista ou de uma análise mais aprofundada dos objetos ali dispostos. 

O que faz de alguém um colecionador?

Como disse anteriormente, todos nós já colecionamos algo em algum momento de nossas vidas. Este impulso, de guardar coisas, é uma resposta a demandas de ordem prática e de ordem emocional. Tanto que se você observar a sua volta, sua casa possui diferentes tipos de acervos orbitando estas duas esferas.

Um jogo de prato ou de copos pode facilmente ser enquadrado como um acervo de ordem prática-funcional. No entanto, a partir do momento em que estes objetos deixam de ser definidos por seu caráter funcional – para aquilo que foram originalmente criados – e passam a representar uma ideia ou um conceito específico, dentro do universo da pessoa que os reuniu, eles são elevados para a esfera emocional. 

Mas como se dá essa transição ou distinção? A resposta é um pouco mais complexa e pode variar de pessoa para pessoa. Entretanto, um denominador comum é a relevância dada pelo indivíduo a este ou aquele objeto. É como se algo ressoasse dentro da pessoa, fruto de uma necessidade ou um desejo qualquer, que substitui o valor de uso ou de utilidade da coisa pelo valor de afeto

Este salto conceitual é o que forma um colecionador. Um quadrinho, por exemplo, deixa de ser uma mera revista ou livro, e passa a representar algo maior. Algo que merece ser coletado, armazenado e exibido. Sendo que os motivos para isso podem ser os mais variados e só podem ser respondidos por aqueles que colecionam.

Todavia, esta pulsão também possui suas etapas. Que, formalmente, podem ser divididas em três: primária, intermediária e profissional. Antes de qualquer coisa, fica aqui o meu aviso de que o processo descrito abaixo é uma racionalização. Sendo assim, há mais coisas entre o primeiro e o último item coletado que nossa vã filosofia pode imaginar.

As etapas do colecionismo

Fase Primária

A primeira fase é marcada por uma rápida expansão. Motivada pela aproximação com o universo temático e a empolgação inicial, as aquisições deste período são realizadas com poucos critérios. 

É o momento da paixão. Todo aquele entusiasmo, aquela vontade de estar próximo do objeto amado e algumas situações um tanto quanto impensadas. É aquele hiperfoco onde um grande volume de informações é consumido gerando um salamaleque de referências e compras. Gerando aquela famosa coleção self-service: tem de tudo um pouco. Afinal de contas, temos que dar conta de todos aqueles “10 melhores quadrinhos de fulano”, “20 quadrinhos que não podem ficar de fora” e por aí vai.

No entanto, passada essa euforia, sobra à ressaca e a pessoa se vê em sua primeira crise: vale a pena todo este esforço? Em caso de negativa, a coleção é interrompida e pode ocorrer o descarte gradual do acervo coletado ou o seu congelamento em um espaço físico qualquer. Em caso positivo, um procedimento de lapidação é a próxima etapa.

Fase intermediária

Com a entrada da espada da razão no recinto, é chegada a hora de refinar. E não raro você se pega pensando onde que estava com a cabeça quando comprou aquele quadrinho ou mangá de gosto duvidoso…

Justice League – Road to dark 1 capa variante por Chris Burnham

Exemplares, autores e temas são descartados em prol de uma unidade temática e as compras agora passam a ser mais criteriosas. E é neste ponto que os motivos pelos quais se está colecionando ficam mais claros e se parte em busca de uma coleção madura.

Nesta fase ocorre uma sistematização de métodos e processos. Ao mesmo tempo em que podem surgir subdivisões dentro da coleção. Por exemplo, a decisão por se adquirir obras de um mesmo autor(a), por gênero ou, até mesmo, por editora.

Mas feito esse movimento, uma nova barreira se apresenta. E ela é relacionada às reais condições de se manter a atividade colecionadora. Em bom português: “tenho condições financeiras de comprar os meus quadrinhos?”

Se a resposta for não, é muito comum o rompimento com a atividade e manutenção do material já reunido ou seu possível descarte. Já em caso positivo, nos aproximamos da profissionalização das ações colecionistas.

Fase profissional (sênior)

O último estágio da prática colecionista passa, primeiramente, por uma segunda onda de expurgos. Títulos são novamente avaliados, autores idem e novos descartes podem ocorrer, assim como novos desdobramentos temáticos. Além disso, as aquisições são fundamentadas por metodologias objetivas e o uso de informações confiáveis.

Por informações confiáveis, você pode entender sites e publicações especializadas, fóruns e grupos, youtubers e instagrammers. Sempre tendo o cuidado de cruzar dados e pesquisar de forma aprofundada.

Aqui é também o momento de se questionar quanto à salvaguarda dos objetos colecionados. Pois, após coletar certa quantidade de itens é necessário garantir a sua integridade e em caso de alerta é possível se fazer duas coisas: 

  • Conclusão do processo de aquisição e foco nos cuidados necessários para manutenção dos exemplares;
  • Desfazer-se de parte do acervo, dentro dos limites possíveis da manutenção responsável, visando novos itens e a continuação da atualização da coleção.

Chegado a este ponto de maturação, a expansão passa a ser ainda mais criteriosa e se concentra somente naquilo que é essencial. Um possível caminho a ser percorrido pelo colecionador a partir daqui é a eventual doação da coleção a órgãos e/equipamentos públicos, dada a importância e valor do acervo. Como exemplo disso temos as gibitecas de Belo Horizonte e Porto Alegre.

E o tal do FoMO?

Desta esquematização é possível abstrair que apesar de ser movido por um desejo sem fim, o colecionador age de forma sistemática para alcançar determinados objetivos. Ainda assim, este entendimento vem com o tempo e maturidade para se entender o custo de oportunidade de cada aquisição.

Tudo isso vai na contramão da cultura do hype que se formou nos últimos anos, onde se deve consumir os produtos em primeira mão para não tomar spoilers e ter sua experiência “estragada”. Com efeito, sofremos de um constante medo de estar por fora. Ao passo de que, é possível dizer, que o pavor de perder uma promoção sazonal é geral.

Este sentimento foi cristalizado na sigla FOMO, que em inglês significa “fear of missing out” ou “medo de estar perdendo algo”. O termo está intimamente ligado à internet e as dinâmicas das redes sociais, que deram um sentido único de urgência a todas as coisas. E em um mundo onde tudo é urgente, para onde dirigir a minha atenção?

O resultado disso é um excesso de informação, que mais confunde do que ajuda. Tanto que, por mais que os dados digam o contrário, a sensação é de um fluxo cada vez mais veloz de novidades. 

acervo pessoal

Há quem diga que nunca se publicou tantos quadrinhos no Brasil como agora, isso, porém, não é verdade. Em levantamento do crítico, tradutor e jornalista Érico Assis, 2021 não foi nem de longe o ano em que se mais publicou HQs em terras brasileiras. O ano de ouro foi em 2015, onde 169 editoras brasileiras publicaram 2519 quadrinhos. Já em 2021, 87 editoras publicaram um total de 2280 quadrinhos, segundo dados do Guia dos Quadrinhos.

Porém, é mesmo necessário adquirir tudo o que vem sendo publicado? Colecionismo e quadrinhos deveriam ser tratados a toque de caixa? Não seria esta uma necessidade fomentada pela FOMO? 

Estamos vivendo um momento único no Brasil: nunca se falou tanto sobre quadrinhos. E mesmo que seja um conteúdo de nicho, a quantidade de conteúdo sendo produzido é gigantesca. Sobretudo conteúdo imagético. 

São fotos e vídeos onde normalmente o youtuber ou o instagrammer tem como fundo uma enorme estante repleta de quadrinhos, funkos pop, livros, action figures e estatuetas. Eventualmente ele segura o lançamento do mês nas mãos ou até mesmo uma pilha deles ao lado. Enquanto isso, você cata moedas e se resigna a reclamar dos altos preços da Panini. 

Com este cenário, a FOMO produz também um sentimento de competição e a percepção de que a grama do vizinho é sempre mais verde. E convenhamos, ninguém é imune a este sentimento, principalmente quem faz parte da dinâmica colecionista. Colecionadores podem ser extremamente competitivos e predatórios, mas isso é papo para outro dia. 

Combatendo a FOMO

Em tempos onde a nossa atenção é disputada a tapa, as editoras estão cada vez mais trabalhando para criar burburinho em torno do próximo lançamento. O que não é errado, afinal, essa é a função delas. E para isso, muitas das vezes um exército de influenciadores funciona como uma caixa de eco, intensificando todo o hype. Além, é claro, daquele desconto “imperdível” da pré-venda. 

Tudo isso nos coloca em um estado de frenesi onde quem acaba sofrendo é o bolso. E também a sua própria coleção, já que ao comprar uma HQ você deixa de comprar outra, de novo o tal do custo de oportunidade. Por isso é necessário dar um passo atrás e verificar os critérios que fizeram você coletar e armazenar os itens que estão na sua coleção.

Analise em qual momento está a sua coleção e pense em sua expansão, tanto física quanto temática. Verifique as condições de armazenagem dos seus gibis e até mesmo a sua saúde financeira. Tenha em mente que para se ter uma boa coleção, ela não precisa ter tudo o que é publicado. O que ela precisa ser é uma extensão da sua história e de sua relação com o universo da nona arte.

Para alcançar este objetivo é preciso calma e discernimento. Sem contar na famosa autocrítica na hora de tomar algumas decisões. Mas se ainda assim, rolar aquela vontade: pesquise. Vá a fóruns, converse com outros leitores e principalmente, leia críticas. Pois elas podem servir para, entre outras coisas, te dizer se a HQ é realmente tudo aquilo que a editora e o hype te fizeram acreditar.

Colecionar é sobre você

Recapitulando todo este percurso, colecionar é como a linha editorial da DC e suas inúmeras crises. Você começa a gostar de algo, expande agressivamente aqueles temas, percebe-se inchado, expurga o que não é mais necessário, explora novas possibilidades, divide em subtemas e vez ou outra, quando bate a dúvida, volta aos clássicos.

E no centro de todas essas páginas coloridas a figura do Pirata Psíquico. Um ser que se lembra e que por isso pode continuar a narrar à história. Assim é a pessoa que coleciona.

Ela coleta e guarda para se lembrar e com isso ela tem o poder de criar narrativas numa eterna busca de se encontrar. De criar um espaço onde ela possa se ver afetivamente representada, onde cada exemplar é um pedaço de algo maior. Por isso, continue a contar a sua história da melhor maneira possível. Com ou sem hype, sem cobranças e principalmente sem comparações.

Referências bibliográficas:

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de
Janeiro Janeiro: Editora Editora FGV, 2004. p.263-270

CRUSCO, Sérgio. Colecionar é contar histórias. Revista Continuum. Itaú Cultural, n.29,
jan/fev.2011. p.12-15.

GRECCO, Vera. Colecionismo: o desejo de guardar. Jornal do MARGS, Porto Alegre, n.83,
jun.2003

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